A espiritualidade e vivência da morte: Revendo Tabus
Iara Fagundes
Desde tempos muito remotos o homem tenta entender o processo da morte e
as possibilidades de uma vida pós-morte. Ainda hoje muitas pessoas se
questionam sobre a possibilidade da existência de uma vida além desse tempo que
conhecemos. A religiosidade tem tentado nos dizer que há uma continuidade após
a morte e que a vida não termina com a morte do nosso corpo. Frente a essa
realidade nos questionamos se a espiritualidade tem contribuído para o
enfrentamento da perda de um familiar.
A cultura e a sociedade contemporânea são marcadas pela ambiguidade. Na
mesma época, em que temos grandes avanços na área biomédica, que nos fazem crer
na possibilidade de uma vida longa, em contra partida, temos encontrado também
o mais cruel descaso com a vida humana.
A Tanatologia, a Psicologia da Morte e a Espiritualidade, serão
abordadas de forma a possibilitar uma melhor compreensão sobre a sua evolução
histórica, descrevendo os estágios do processo de enfrentamento da morte. Para
a compreensão dos estágios do luto e as percepções das pessoas que enfrentam a
perda de um familiar, busca-se investigar se a espiritualização pode diminuir a
dor e ajudar no enfrentamento do processo de luto.
O fascínio que nos provoca o limite entre a vida e morte, emerge agora
com renovado interesse, saindo finalmente do âmbito da tradição e dos costumes,
para o patamar do saber científico, mas necessitando ainda romper tabus, sendo
este um dos motivos pelo qual se busca este tema, por sentir a necessidade de
se conhecer mais, e perceber, no dia-a-dia, a dificuldade do ser humano em
abordá-lo. Para que isso ocorra se faz necessário que se fale abertamente,
sem nenhum tipo de restrição, sobre nossas perdas.
Morte
Existem vários conceitos sobre
morte ao longo da história da humanidade, mas mantém o atributo da
irreversibilidade, morte, óbito, passamento, desencarne. Na biologia e na
medicina o conceito mais utilizado é o que se refere ao processo irreversível
do cessamento das atividades biológicas necessárias a caracterização e
manutenção à vida.
A visão sobre o conceito de morte para alguns nada mais é que o fim de
tudo, ou seja o nada, mas para os espiritualizados a morte nada mais é que o
fim do corpo físico, que algo mais transcende (espírito, alma, energia,
etc...), creem que algo mais existe, e que este não morre com o corpo físico,
fazem parte deste grupo algumas religiões. Num momento em que várias temáticas
consideradas tabus começam a ser encaradas e desfragmentadas no tecido social, a
morte assume-se ainda nos nossos dias como um tema que a sociedade continua a
ignorar.
O tema da morte não é de forma
alguma uma discussão atual. Foram muitos os filósofos, historiadores,
sociólogos, biólogos, antropólogos e psicólogos a discutir o assunto no
decorrer da História. Isto porque a morte não faz parte de uma categoria
específica; é uma questão que atravessa a história, é sobretudo uma questão
essencialmente humana (Fischer,
2007).
Fases
do processos de morrer
As
fases são os estágios que a psiquiatra
suíça, radicada nos Estados Unidos, Elizabeth Kübler-Ross, definiu após seus
estudos com doentes terminais e ao coletar dados importantes por meio de
seminários de discussão sobre a experiência de luto e de morte, e acabou
sistematizando numa escala de estágios de relação à morte pelo qual todos passavam e esta escala se
tornou bastante popular na psicologia e depois no senso comum. (Fischer, 2007).
Segundo Elisabeth Kübler Ross, o
processo de perdas que todas as pessoas que sofrem ou que têm a possibilidade
de sofrer (morte de ente querido, diagnóstico de doença, falência, traição,
punição criminal, etc.) passam por um processo de luto, para poder elaborar e
lidar com essa situação. Ela pesquisou e trabalhou com esse tema e descreveu
cinco fases desse processo de luto:
A primeira das fases é a negação.
Nessa fase a pessoa nega a existência do problema ou situação. Não quer
acreditar nas informações que recebe, tentando racionalizar o processo, tipo
“tudo vai se resolver, isso também vai passar...” Ou simplesmente ignorar o
problema. Pode também tentar negar, “ Isso não é verdade!”.
A segunda fase é a da raiva, a revolta projetada para o
mundo externo, Deus é o culpado ou os outros, a pessoa sente-se inconformada e
vê situação como uma injustiça. Vem o tipo de pensamento: “Por que eu?”, “Isso não é justo!” .
O terceiro estágio de reação à
perda, é a barganha, as pessoas buscam firmar acordos com figuras que segundo
suas crenças teriam poder de intervenção sobre a situação de perda, é uma
tentativa, de negociar ou adiar os temores diante da situação.
A depressão é o quarto
estágio, um sofrimento profundo ocorre
nessa fase, é o momento em que a aceitação está mais próxima, é quando as
pessoas ficam quietas, repensando e processando o que a vida fez com elas e o
que elas fizeram da vida delas. Não deixa de ser um momento de reflexão,
evidentemente, trata-se de uma atitude evolutiva; negar não adiantou agredir e
se revoltar também não, fazer barganhas não resolveu. Surge então um sentimento
de grande perda.
Aceitação é uma das últimas
fases, a pessoa já não experimenta o desespero e não nega sua realidade. Não há mais depressão ou raiva, mas uma
contemplação do fim próximo com um certo grau de tranquila expectativa, e a
compreensão de que a vida chegou ao fim. Nem todos os pacientes passam sequencialmente
por todas estas fases, Kübler-Ross (2012).
Todas as pessoas que sofrem algum
tipo de perda ou que têm a possibilidade de sofrer passam por um processo de
luto, para poder elaborar e lidar com essa situação. As pessoas não passam por
essas fases de maneira linear, podem estacionar em uma delas, sem ter avanços
por longo período ou ainda suplantar todas as fases rapidamente até a
aceitação. Não há regra. Kübler-Ross (2012).
Por
que falar da morte é tão difícil?
Por a morte ter sido sempre um
assunto sagrado nas mais variadas culturas e por esse fator sagrado tudo o que
é sacro inspira fascínio e medo, instaurando tabus que são promovidos através
de rituais e tradições. Faz-se estranho
o fato de a subjetividade moderna, marcada pelo racionalismo e o universalismo,
não tenha conseguido se apropriar da questão da morte, felizmente a excluiu do
signo de fracasso dos poderes humanos. Somente
a partir dos anos de 1960, é que os pioneiros da humanização da saúde sentiram
a necessidade de repensar o tema da saúde ao dar acolhimento às angústias
envolvidas na elaboração dos lutos, ponto este que levou à criação e
consolidação do campo da Psicologia da Morte e da Tanatologia, (Fischer, 2007).
Uma vez que a morte e o morrer
constituem-se como temas complexos, influenciando todas as dimensões humanas, é
importante um debruçar complementar da Psicologia sobre os aspetos e impactos
psicológicos da mesma no individuo, uma vez que fenômenos como o luto, a
solidão e determinadas doenças, encontram não poucas vezes alguma configuração
que sublinha um posicionamento perante a morte e o morrer, uma vez que lhes
subjaz de alguma forma uma experiência de perda. Este posicionamento perante a
morte e o morrer leva, inevitavelmente, a uma consideração sobre a importância
da educação para a morte, (Barros, 1998).
Psicologia
da morte e tanatologia
A Psicologia da Morte é uma área
de aplicação e de estudos em psicologia voltada para as questões envolvidas na
morte como etapa do ciclo vital do desenvolvimento humano e para os processos
psíquicos de elaboração dos lutos em nível individual e social, é uma subárea
da Tanatologia (SOTAMIG, 2010).
Tanatologia de origem grega que
se dá na junção dos radicais
Thanatos e Logos. Thanatos na
mitologia grega era uma entidade masculina, que representava a morte,
considerado filho da noite e irmão do
sono, costumeiramente representada com asas, tendo na mão uma foice e uma urna.
No dicionário Michaelis significa teoria ou
estudo científico sobre a morte, suas causas e fenômenos a ela ligados
(Michaelis, 2012)
O objetivo geral da Tanatologia
como ciência se encarrega de estudar os processos do morrer, do luto,
evidenciando a dicotomia vida e morte, bem como o momento da morte, aborda
particularidades do processo de morrer, auxiliar na compreensão do processo de
morrer, identificando e avaliando a dor psíquica e as dificuldades impostas
pela morte. (Fischer, 2007).
A Tanatologia iniciou-se como um
ramo da medicina (tanatologia forense), onde estudava a morte e suas consequências,
com o tempo foi se tornando um campo mais interdisciplinar, incluindo outros
aspectos além dos métodos e concepções da medicina tradicional. A área teve
como um dos seus pioneiros o médico canadense William Osler. Começou a ganhar
espaço no Brasil na década de 80, quando começaram a surgir textos e a prática
a ganhar adeptos e evidência, derivado do trabalho da crescente
área da psicologia hospitalar e da saúde. (Fischer, 2007). Hoje a tanatologia estuda a
representação da morte no psiquismo humano e as perdas diárias, isto é, as
pequenas mortes, para que enfim, o homem entenda o que é chamado de “a perda
maior” (SOTAMIG, 2007).
Espiritualidade
A espiritualidade proporciona
possibilidades de significação e respostas às perguntas existenciais que se
colocam diante da doença e possibilidade de morte. No entanto, ajudar pacientes
e familiares a encontrar significados para suas experiências ainda se coloca
como um desafio para os profissionais de saúde. Isso se deve, principalmente,
porque os profissionais se sentem despreparados para lidar com as crenças
religiosas e espirituais dos pacientes e familiares e, além disso, por
existirem poucos estudos que abordam este tema na literatura científica. (Bousso, 2011).
Espiritualidade
X Religiosidade
Espiritualidade e religiosidade
são termos que se confundem nos seus conceitos, havendo ainda muitos debates
sobre as suas definições. Segundo Sissy Fontes
(2013), expert em espiritualidade e medicina na Unifesp, a
espiritualidade é a busca pessoal para entender questões como o sentido da vida
e as relações com o sagrado e o transcendente. E isso pode ou não depender de
práticas religiosas, salienta que a religiosidade leva em conta seguir uma
doutrina e a frequência com que se reza
e se participa de rituais, independente de ser em um templo ou em casa. (Fontes, 2013).
Religião é o sistema organizado
de crenças, práticas, rituais e símbolos designados para facilitar o acesso ao
sagrado, ao transcendente (Deus, força maior, verdade suprema ...), ao passo
que a espiritualidade é uma busca pessoal para entender questões relacionadas
ao fim da vida, ao seu sentido, sobre as relações com o sagrado ou
transcendente que, pode ou não, levar ao desenvolvimento de práticas religiosas
ou formações de comunidades religiosas. (Lucchetti, 2010).
Espiritualidade
e Neurociências
A ciência já decifrou certos
efeitos fisiológicos da espiritualidade, pesquisas nesta área comprovam que
pessoas que creem em algo maior tendem a apresentar cargas extra de
neurotransmissores que responde pelo bem-estar
e uma visão otimista, por sua vez alavanca a imunidade. Segundo Castro,
Jurandy (2014), o sistema imunológico tem potencializada a ação das células de
defesa, reduzindo o risco de doenças por diminuição de moléculas inflamatórias,
processo que interfere no código genético, desacelerando o processo de
encurtamento do telômeros (as extremidades dos cromossomos), que levam ao
envelhecimento. (Sponchiat, Manarine, Ruprecht, 2013).
A relação com o transcendente
traz conforto e confiança face ao processo do morrer e também do luto, tanto
quanto outras perdas. O efeito antidepressivo
da fé ou espiritualidade, por mudar a visão de mundo e facilitar a busca
por equilíbrio nos momentos difíceis se torna objeto de interesse por parte dos
cientistas. O psiquiatra Alexander
Moreira-Almeida, (2010) da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais,
comprovou sua tese, estudando dois mil sujeitos numa cidade de São Paulo,
segundo ele, a religiosidade pode interferir, entre outras coisas, na ativação
de alguns sistemas cerebrais, como os de seretonina e dopamina,
neurotransmissores associados ao bem-estar. Em um outro estudo realizado na
Columbia, nos Estados Unidos com filhos de pais deprimidos, aos dez anos e
depois aos vinte anos, descobriu que os jovens espiritualizados se tornaram
adultos mais protegidos contra a tristeza profunda e uma menor probabilidade de
desenvolver o problema, num índice dez vezes maior em relação aos não
espiritualizados, havendo ainda indícios que a porção frontal do cérebro que
reponde pela nossa capacidade de controle, também seja favorecido, (Moreira,
2010)
Fontes
Bousso, Regina Szylit .Rev. esc. enferm. Crenças religiosas, doença e
morte: perspectiva da família na experiência de doença. USP vol.45 no.2 São
Paulo Apr. 2011
Sponchiat, Diogo. Manarine, Thaís. Ruprecht, Theo.
Revista “Saúde é Vital” - Ed.
Abril. p. 26-31, Dezembro 2013
Fischer,
Joyce Mara Kolinski. Manual de Tanatologia
- Curitiba : Gráfica e Editora Unificado, 2007. crppr.org.br/download/159.pdf
Koenig, Harold G. Medicina, religião
e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade; Trad. Iuri Abreu.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
Kübler-Ross, Elizabeth. “Sobre a morte
e o morrer”. 9ª edição, 3ª tiragem. Ed. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2012.
Lucchetti
,Giancarlo. Espiritualidade na prática
clínica: o que o clínico deve saber? Rev Bras Clin Med 2010;8(2):154-8
MOREIRA-ALMEIDA,
Espiritualidade e
Saúde. In: Revista de Psiquiatria Clínica.
N. 37, ano 2, 2010, p. 41-42.